16 Setembro 2023
“Chegará a manhã em que poderemos reconhecer no rosto de qualquer ser humano o nosso irmão ou irmã. Enquanto não conseguirmos fazer isso, ainda será noite.”
Publicamos aqui o discurso do teólogo e padre tcheco Tomáš Halík à Assembleia Geral da Federação Luterana Mundial.
O discurso foi publicado por The Tablet, 14-09-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo o teólogo, "O programa de reforma sinodal lançado pelo Papa Francisco pode ter um significado muito mais amplo e profundo do que a necessária reforma da Igreja Católica. Estou convencido de que aqui está o possível início de uma nova reforma do cristianismo, que se baseará tanto no Concílio Vaticano II quanto na revitalização pentecostal do cristianismo global. A reforma da Igreja deve ser muito mais profunda do que a reforma das instituições da Igreja. A fecundidade da reforma e a vitalidade futura do cristianismo dependem da redescoberta da relação com as dimensões espirituais e existenciais da fé. Uma espiritualidade cristã renovada e novamente compreendida pode dar uma contribuição significativa para a cultura espiritual da humanidade hoje, até mesmo muito além das Igrejas".
"Talvez até o Papa Francisco e toda a Igreja Católica - afirma Halík - estejam apenas gradualmente se dando conta de que a renovação sinodal é um processo que não diz respeito exclusivamente à Igreja Católica.
O cristianismo está no limiar de uma nova reforma. Não será a primeira, nem a segunda, nem a última. Nas palavras de Santo Agostinho, a Igreja está sempre em reforma, “semper reformanda”. Mas, especialmente em tempos de grandes mudanças e crises no nosso mundo comum, reconhecer e responder ao chamado de Deus em relação a esses sinais dos tempos é uma tarefa profética da Igreja.
Com Martinho Lutero, o grande mestre da sabedoria paradoxal da cruz e discípulo dos grandes místicos alemães, devemos aprender nestes tempos a ser sensíveis ao modo como o poder de Deus se manifesta – “sub contrario” – nas nossas crises e fraquezas. “Minha graça te basta” – essas palavras de Cristo ao Apóstolo Paulo também se aplicam a nós, sempre que somos tentados a perder a esperança nas noites escuras da história.
A reforma, a transformação da forma, é necessária quando a forma impede o conteúdo, quando inibe o dinamismo do núcleo vivo. O núcleo do cristianismo é o Cristo ressuscitado e vivo, que vive na fé, na esperança e no amor dos homens e das mulheres na Igreja e para além de suas fronteiras visíveis. Essas fronteiras precisam ser expandidas, e todas as nossas expressões humanas externas de fé precisam ser transformadas, caso se interponham no caminho do nosso desejo de ouvir e compreender a Palavra de Deus.
Duas Reformas paralelas no século XVI, a Reforma Luterana e a Reforma Católica, enriqueceram, renovaram e aprofundaram o cristianismo, mas também o dividiram. O século XX também viu o início de duas grandes Reformas paralelas – a expansão global do cristianismo pentecostal e o Concílio Vaticano II. Este último marcou a transição (êxodo) da Igreja Católica do “catolicismo” (fechamento confessional, contracultura ao protestantismo e à modernidade) para a catolicidade, a abertura ecumênica universal.
A Reforma mais recente e atual pode se basear nessas duas “revoluções inacabadas” em curso e, assim, dar um passo importante rumo à unidade cristã: um só corpo, um só Espírito, uma só esperança. Mas estou profundamente convencido de que só receberemos o dom da unidade entre os cristãos se nos empenharmos em um caminho comum rumo a um ecumenismo ainda mais amplo e profundo.
O ecumenismo do século XXI deve ir muito mais longe do que o ecumenismo do século passado. A unidade entre os cristãos não pode ser o objetivo último da nova Reforma; só pode ser um subproduto do esforço para reunir toda a família humana e assumir uma responsabilidade comum pelo seu ambiente, por toda a criação.
A nova Reforma deve fortalecer a consciência da corresponsabilidade cristã por todo o “corpo” do qual fazemos parte por meio do mistério da Encarnação da Palavra de Deus: por toda a família humana e pelo nosso mundo comum. Devemos perguntar não apenas o que “o Espírito diz às Igrejas hoje”, mas também como “o Espírito, que sopra onde quer” age para além das Igrejas. Precisamos ter a coragem de transcender quenoticamente as atuais formas e fronteiras do cristianismo.
É necessário compreender e aceitar mais profundamente qual é a missão e a essência da Igreja: ser um sinal eficaz (signum efficiens) da unidade à qual toda a humanidade é chamada, ser um instrumento de reconciliação e de cura das feridas do nosso mundo comum. Lutamos pela unidade não para tornar o cristianismo mais poderoso e influente neste mundo, mas para torná-lo mais crível: para fazer o mundo acreditar.
Devemos comunicar a mensagem que nos foi confiada de uma forma credível, inteligível e convincente. As tensões entre os cristãos minam essa credibilidade.
São Paulo chama os cristãos não à uniformidade, mas ao respeito mútuo e à harmonia entre as várias partes do corpo, insubstituíveis precisamente pela sua diversidade e singularidade. É essa unidade dos cristãos, unidade na diversidade, que deve ser o início, a fonte e o exemplo de coexistência dentro de toda a família humana, uma forma de partilha, de compatibilidade mútua dos nossos dons, experiências e perspectivas.
A primeira Reforma surgiu da coragem de São Paulo de levar o jovem cristianismo para fora dos estreitos limites de uma das seitas judaicas para dentro da “ecumene” mais ampla do mundo daquela época. Ele apresentou-a como uma oferta universal, que transcende as fronteiras religiosas, culturais, sociais e de gênero: já não importa se alguém é judeu ou gentio, homem ou mulher, livre ou escravo – somos todos novas criaturas em Cristo.
Também hoje, o cristianismo enfrenta a necessidade de transcender as fronteiras mentais e institucionais, confessionais, culturais e sociais existentes, a fim de cumprir sua missão universal. Devemos estar mais abertos e receptivos ao chamado de Deus, escondido nas dores e ansiedades, nas alegrias e esperanças das pessoas com quem compartilhamos o oikumene, o mundo comum.
Contribuiremos para que o nosso testemunho ajude a transformar este mundo em uma “civitas ecumenica” ou seremos cúmplices, por meio da nossa indiferença e egocentrismo, no trágico choque de civilizações? As comunidades de fé se tornarão parte da solução para as dificuldades que enfrentamos hoje ou, antes, farão parte do problema?
A história do mundo e a história da Igreja não é um progresso unilateral nem um declínio permanente e uma alienação de um passado idealizado, mas sim um drama aberto, uma luta constante entre a graça e o pecado, a fé e a descrença, travada em cada coração humano.
Martinho Lutero ensinou que todo cristão é “simul justus et pecator”. Acrescentemos que muitas pessoas no nosso mundo de hoje são “simul fidelis et infidelis” – uma hermenêutica da confiança entrelaçada nelas com uma hermenêutica do ceticismo e da dúvida. Se conseguirmos transformar o conflito de fé e dúvida dentro das nossas mentes e corações em um diálogo honesto, isso ajudará na maturidade da nossa fé e poderá contribuir para um diálogo entre crentes e não crentes que vivem juntos em uma sociedade pluralista. A fé sem questões críticas pode levar ao fundamentalismo, à intolerância e ao fanatismo. A dúvida que é incapaz de duvidar de si mesmo pode levar ao cinismo. A fé e o pensamento crítico precisam um do outro.
Uma fé madura pode conviver com as questões em aberto do tempo e resistir à tentação das respostas simplistas oferecidas pelas perigosas ideologias contemporâneas.
No Concílio Vaticano II, a Igreja Católica comprometeu-se a lutar pela unidade entre os cristãos, a dialogar com os fiéis de outras religiões e com as pessoas sem nenhuma fé religiosa, e a se solidarizar com todas as pessoas, especialmente os pobres e os necessitados. Professava ser uma “communio viatorum”, uma comunidade de peregrinos que estão longe da meta escatológica da plena unidade com Cristo e em Cristo.
A Igreja na terra não é a “ecclesia triumphans”, a Igreja vitoriosa e perfeita dos santos no céu. Quem considera qualquer forma da Igreja e sua teologia no meio da história como final e perfeita, quem confunde a “Igreja militante” terrena (ecclesia militans – que deve lutar principalmente contra seus pecados) com a vitoriosa ecclesia triumphans comete a heresia do triunfalismo, o pecado da idolatria.
Devemos aos críticos da religião como Feuerbach, Marx e Freud o reconhecimento de que muitas das nossas ideias sobre Deus eram apenas projeções dos nossos medos e desejos, e das nossas condições sociais. Devemos a Friedrich Nietzsche o reconhecimento de que esse Deus da nossa imaginação está morto. Devemos a Dietrich Boenhoffer o conhecimento de que a nossa fé pode viver sem esse deus das nossas ilusões.
Bonhoeffer, discípulo do Mestre Eckhart e de Martinho Lutero, ensinou-nos que a única transcendência cristã autêntica é a autotranscendência em relação aos outros em solidariedade e amor sacrificial.
Hoje, não apenas os cristãos individuais, mas também as nossas Igrejas, todo o cristianismo, são chamados a esta autotranscendência (kenosis).
Mas, se o cristianismo “sair de si mesmo”, não perderá sua identidade? As pessoas na época de Martinho Lutero eram dominadas pelo medo em relação à salvação de suas almas. No nosso tempo, as pessoas, as nações, as comunidades religiosas e as Igrejas são assombradas pelo medo de perderem sua identidade. Talvez o conceito de “identidade” não esteja muito longe daquilo que a palavra “alma” expressava no passado – aquela coisa mais preciosa em nós que nos torna quem somos. “O que alguém pode dar em troca de sua alma?” (Mateus 16,26)
Populistas, nacionalistas e fundamentalistas religiosos exploram esse medo em benefício de seu próprio poder e interesses econômicos. Exploram-no da mesma forma que o temor pela salvação da alma foi explorado nos tempos da venda de indulgências. Oferecem como substituto da “alma” vários tipos de identidade coletiva sob a forma de nacionalismo e sectarismo político ou religioso. Também fazem um mau uso dos símbolos e da retórica cristãos; fazem do cristianismo uma ideologia política identitária.
Martinho Lutero, mas também os místicos da Reforma Católica, Teresa d’Ávila, João da Cruz e Inácio de Loyola, reconheceram o caminho da salvação na fé, na relação pessoal do ser humano com Cristo e na doação de Cristo a mim (pro me).
O que constitui a base da identidade cristã e que para nós, cristãos, é também a chave hermenêutica para compreender a história, incluindo os sinais dos tempos de hoje, é o evento pascal que outrora entrou na história e continua a transformá-la. Estou convencido de que a teologia da cruz de Lutero precisa ser renovada, repensada e aprofundada hoje.
Mediante as crises globais cumulativas do nosso mundo – mudanças climáticas, destruição ambiental, pandemias de doenças contagiosas, crescimento da pobreza, guerra e terrorismo – participamos da “passio continua”, o mistério contínuo da cruz. “Onde multiplicou o pecado, multiplicou-se também a graça”, escreve São Paulo. A cruz é o caminho para a ressurreição.
A ressurreição não é um final feliz barato; a fé na ressurreição não é uma graça barata.
O Jesus ressuscitado veio de uma forma tão modificada que em princípio até mesmo as pessoas mais próximas a ele não conseguiram reconhecê-lo e, por muito tempo, duvidaram se era ele ou não.
Cristo também vem até nós em muitas formas novas, surpreendentes e ambivalentes.
Ele vem até nós assim como aos apóstolos depois da ressurreição. Ele chega como um estrangeiro, como no caminho de Emaús; só o reconhecemos depois de partir o pão. Ele passa pelas portas trancadas do nosso medo, “legitima-se” com suas feridas. Quando ignoramos as feridas do nosso mundo, essas feridas de Cristo no mundo atual, não temos o direito de dizer como o apóstolo Tomé: “Meu Senhor e meu Deus!”.
A fé na ressurreição inclui a aventura de procurar o Cristo oculto e transfigurado. Conhecemos o verdadeiro Cristo, a verdadeira Igreja e a verdadeira fé ao serem feridos. Um Cristo ferido, uma Igreja ferida e uma fé ferida trazem o dom do Espírito, a paz e o perdão ao mundo.
Jorge María Bergolio, em um sermão antes de sua eleição como bispo de Roma, citou as palavras do Apocalipse: Jesus está à porta e bate. E acrescentou: hoje Jesus bate do outro lado, do lado de dentro da Igreja – ele quer sair e devemos segui-lo. Ele quer ir acima de tudo a todos os marginalizados, aos que estão à margem da sociedade e da Igreja, aos pobres, aos explorados. Ele vai aonde as pessoas estão sofrendo. A Igreja deve ser um hospital de campanha, onde as feridas – físicas, sociais, psicológicas e espirituais – são tratadas e curadas.
No meio da pandemia (e do confinamento), eu escrevi um livro, “The Time of Empty Churches” [O tempo das igrejas vazias]. Vi essa experiência como um sinal de alerta dos tempos: a menos que o cristianismo passe por uma transformação radical, igrejas, mosteiros e seminários fechados e vazios continuarão se multiplicando.
As igrejas vazias e fechadas durante a pandemia do coronavírus na Páscoa lembravam o túmulo vazio de Jesus. “Essas igrejas não são apenas túmulos e lápides de um Deus morto?”, perguntou Friedrich Nietzsche em seu famoso texto sobre a morte de Deus.
Muitas igrejas na nossa parte do mundo que antes estavam cheias agora estão vazias. Nos nossos países – sim, até mesmo em “países tradicionalmente cristãos” como a Polônia – o número de “nones” [sem religião] – pessoas que respondem “nenhuma” quando questionados sobre sua identidade religiosa – está crescendo rapidamente.
Em muitos países, o número de pessoas que se identificam plenamente e participam ativamente nas igrejas está diminuindo. O número de ex-católicos e ex-protestantes está crescendo.
Entre os “sem religião” – aqueles que não se inscrevem em nenhuma religião – há muitos que ficaram decepcionados, muitas vezes escandalizados, com o estado de suas igrejas. Trata-se daqueles que procuraram nas igrejas respostas para suas questões existenciais sérias, mas ouviram apenas frases religiosas estereotipadas. Há os “apateístas”, que são indiferentes à fé porque nunca encontraram um cristianismo que falasse em uma linguagem que eles pudessem entender e acreditar. Entre eles, há aqueles que foram criados na fé durante a infância, mas, quando cresceram para além da forma infantil da fé, ninguém lhes ofereceu uma fé madura para pessoas adultas.
Quando Jesus nos dá as crianças como exemplo, ele não nos chama à religiosidade infantil, mas sim a sermos abertos, espontâneos, ávidos, desinibidos e também capazes de crescer e aprender como as crianças.
Contudo, em muitas partes do mundo – ao contrário da Europa e da América do Norte – o número de novos cristãos está em constante crescimento. Deveríamos nos alegrar com isso. Aqui na Europa, deveríamos ouvir mais e entender que coisas novas a experiência dos cristãos na África e na Ásia traz para o campo da teologia e da espiritualidade. No entanto, não podemos suprimir a questão de saber se aquelas igrejas que hoje estão cheias do entusiasmo do cristianismo jovem não encontrarão no futuro um destino semelhante ao do cristianismo no Ocidente e no Norte do nosso planeta.
A parábola do semeador contada por Jesus também fala sobre regiões onde a semeadura cresce rapidamente, mas depois morre porque não criou raízes. A partir da experiência do nosso passado, devemos recordar que o número de batismos e de igrejas cheias está longe de ser um critério fiável e o único sinal necessário para garantir a vitalidade contínua da Igreja.
A principal missão da Igreja é a evangelização. A evangelização fecunda e eficaz consiste na inculturação – na encarnação criativa da fé na cultura viva, na maneira como as pessoas pensam e vivem. A futura reforma da Igreja é uma resposta a um processo de longo prazo que é o oposto da evangelização: o processo de exculturação do cristianismo em grande parte do nosso mundo.
Podemos falar de exculturação onde a fé cristã, ou sua forma externa, a Igreja, e suas formas de expressão perdem credibilidade, clareza e fecundidade. Uma certa forma de Igreja torna-se então um grão que não pode morrer por si só e produzir uma nova planta. Permanece inalterado e perece sem benefício.
Mas voltemos ao relato da Páscoa. Aqueles que chegam ao “túmulo vazio” não devem cair em tristeza e confusão. Não devemos lamentar o cristianismo morto do passado. Não deveríamos ser surdos à voz que nos diz: “Por que procuram o vivo entre os mortos? Vão para a Galileia, lá vocês o verão!”
A tarefa dos discípulos de Jesus, a partir da manhã de Páscoa, é procurar o Cristo vivo, mas muitas vezes irreconhecivelmente mudado, procurar a “Galileia de hoje”, onde podemos encontrá-lo. Não será essa Galileia de hoje precisamente o mundo dos “sem religião”, das pessoas que vivem fora dos limites da religião? Não é principalmente a eles que a nossa missão deve se dirigir?
Os esforços missionários do cristianismo hoje devem ser dirigidos primeiro para dentro da Igreja. Ali encontramos muitos “vales de ossos secos” aos quais a Palavra do Senhor deve ser anunciada.
Só depois poderemos sair para o vasto mundo dos “sem religião”, para além das fronteiras visíveis das Igrejas e das comunidades religiosas. Mas primeiro devemos entender bem este mundo. Seria um mal-entendido considerar aqueles “que não caminham conosco” como ateus ou não crentes. E devemos distinguir bem também entre os ateus. Se muitos “ateus” rejeitam um certo tipo de teísmo, as teorias humanas sobre Deus, isso não significa necessariamente que estejam fechados ao mistério que designamos pela palavra Deus.
Nós também, seguindo os passos do Mestre Eckhart, de Dietrich Bonhoeffer e de Paul Tillich, devemos descobrir e proclamar um “Deus além do deus do teísmo”.
Parte da “nova Reforma”, da “nova evangelização” e do ecumenismo do século XXI é também uma transformação da forma de missão. Não podemos abordar os outros como possuidores arrogantes da verdade. Só Jesus pode dizer: “Eu sou a verdade”. Nós não somos Jesus; somos discípulos imperfeitos de Jesus, em uma jornada de discipulado em que o Espírito nos leva gradualmente à plenitude da verdade.
A meta dessa jornada, a plenitude da verdade, é uma meta escatológica. Agora vemos apenas em parte, como em um espelho, como em um quebra-cabeça. Essa consciência dos limites das nossas perspectivas individuais e grupais deveria nos levar à humildade e ao reconhecimento de que, para expandir esses limites, precisamos de receptividade e respeito pela experiência dos outros.
O objetivo da missão não é recrutar novos membros da Igreja para esmagá-los dentro das fronteiras mentais e institucionais existentes das nossas Igrejas, mas sim ir além dessas fronteiras e, junto com eles, em respeito mútuo e diálogo mutuamente enriquecedor, dar o próximo passo na jornada rumo a um Cristo que é maior do que as nossas ideias sobre ele.
Vocês estão reunidos em uma parte do mundo que atravessou a noite escura da perseguição comunista. A opressão comunista assumiu formas muito diferentes nos diferentes países da Europa Central e Oriental e mudou ao longo dos anos. A grande autoridade moral do Papa João Paulo II, ex-arcebispo de Cracóvia, contribuiu significativamente para o fato de a solidariedade dos trabalhadores, dos intelectuais e da Igreja ter dado início aqui na Polônia ao colapso europeu da ditadura comunista, que culminou na revolução não violenta de 1989. A transição do comunismo para a democracia na maior parte da Europa naquele tempo (com exceção da Romênia) foi sem derramamento de sangue, mas não foi fácil. A democracia não é apenas um certo regime político, mas sobretudo uma certa cultura de relações interpessoais. A democracia não pode ser estabelecida e sustentada meramente pela mudança das condições políticas e econômicas; a democracia pressupõe um certo clima moral e espiritual.
O colapso do comunismo não foi uma transição imediata para a terra prometida, mas sim o início de um longo êxodo que ainda está em curso, durante o qual os cristãos nos países pós-comunistas foram sujeitos a muitas provações e tentações. A sociedade, depois de um longo período de ditadura, está sempre ferida, doente – exige um processo terapêutico. Aí está um lugar importante para a Igreja; os cristãos deveriam ser especialistas no processo de reconciliação. As Igrejas nos países que ainda não viram a queda do comunismo deveriam estar preparadas para isso. O processo de reconciliação é muitas vezes difícil – a culpa deve ser confessada e nomeada, e é preciso adotar um caminho de arrependimento, de cura.
Em muitos países pós-comunistas, esse processo foi negligenciado. Muitos dos últimos comunistas tornaram-se os primeiros capitalistas. Alguns países pós-comunistas são governados por populistas e oligarcas – antigas elites comunistas, as únicas que tinham o capital do dinheiro, contatos influentes e informação após a queda do comunismo. O “capitalismo selvagem” nos países pós-comunistas leva a grandes problemas sociais. Na Rússia, há uma crise econômica, moral e demográfica. O regime ditatorial de Putin não tem nada a oferecer à sua população, exceto a droga do messianismo nacional.
Após o colapso do comunismo, surgiram visões otimistas de que o final feliz da história, a vitória global da liberdade e da democracia, estava próximo. Hoje, não muito longe do local onde nos encontramos, está se desenrolando um apocalipse que levanta a ameaça real de um “fim da história” bastante diferente: a guerra nuclear. A agressão da Rússia contra a Ucrânia não é apenas uma de suas guerras locais; a tentativa de genocídio do povo ucraniano faz parte do plano da Rússia de restabelecer seu império em expansão. A principal razão para a invasão russa foi o receio do regime russo de que o exemplo das “revoluções coloridas” democratizantes nas antigas repúblicas soviéticas despertasse a sociedade civil e o desejo de democracia na própria Rússia.
O que está ocorrendo agora na Ucrânia lembra fortemente a estratégia de Adolf Hitler, da qual as nações desta parte do mundo têm experiência: primeiro ocupar os territórios com minorias linguísticas e, se o mundo democrático permanecer em silêncio e sucumbir à ilusão de que acordos e compromissos podem ser feitos com ditadores, a expansão continuará. Se o Ocidente traísse a Ucrânia e cedesse às exigências de Moscou, como fez no caso da Tchecoslováquia no limiar da Segunda Guerra Mundial, não salvaria a paz, mas encorajaria ditadores e agressores, não apenas no Kremlin, mas também no mundo todo. Amar o inimigo significa, no caso de um agressor, impedi-lo de fazer o mal, ensina o Papa Francisco em sua encíclica Fratelli tutti; em outras palavras, tirar de sua mão a arma do crime.
Cinicamente, Putin usa o messianismo religioso russo e os líderes corruptos da Igreja Ortodoxa Russa para fomentar seus objetivos. A comunidade cristã ecumênica global não pode ficar cega e indiferente também a esse escândalo.
Quando a Igreja estabelece “parcerias registradas” com o poder político, especialmente com partidos nacionalistas e populistas, sempre paga um preço elevado. Quando a Igreja se deixa corromper por um regime político, primeiro perde sua juventude e pessoas instruídas e com pensamento crítico; a nostalgia do passado, do casamento entre Igreja e Estado, priva a Igreja de seu futuro. Quando a Igreja entra em “guerras culturais” com seu ambiente secular, ela sempre sai delas derrotada e deformada; as guerras culturais aprofundam o processo de exculturação e secularização.
A alternativa às guerras culturais não é a conformidade e a acomodação barata, mas sim uma cultura do discernimento espiritual. Esse discernimento trata da distinção entre o “zeitgeist”, que é a linguagem “deste mundo”, e os “sinais dos tempos”, que são a linguagem de Deus nos acontecimentos do mundo, da sociedade e da cultura. Nos tempos do comunismo, a Igreja precisava mais da virtude da coragem para se defender. Hoje, ela precisa mais da virtude da sabedoria, a arte do discernimento espiritual.
Em um tempo de guerras religiosas devastadoras no século XVII, o teólogo protestante tcheco John Amos Comenius, bispo da Unitas Fratrum, em sua obra “De rerum humanarum emendatione consultatio catholica” [Consulta geral sobre a retificação dos assuntos humanos], fez um convite para um caminho comum de aprendizagem mútua, partilha, renovação, reflexão e aceitação de responsabilidades.
Semelhante ao que ensinou então aquele bispo evangélico da Boêmia, o bispo de Roma proclama hoje seu apelo à sinodalidade e à luta pela unidade de toda a família humana, sobre a qual ele escreve em sua encíclica Fratelli tutti.
O programa de reforma sinodal lançado pelo Papa Francisco pode ter um significado muito mais amplo e profundo do que a necessária reforma da Igreja Católica. Estou convencido de que aqui está o possível início de uma nova reforma do cristianismo, que se baseará tanto no Concílio Vaticano II quanto na revitalização pentecostal do cristianismo global. A reforma da Igreja deve ser muito mais profunda do que a reforma das instituições da Igreja. A fecundidade da reforma e a vitalidade futura do cristianismo dependem da redescoberta da relação com as dimensões espirituais e existenciais da fé. Uma espiritualidade cristã renovada e novamente compreendida pode dar uma contribuição significativa para a cultura espiritual da humanidade hoje, até mesmo muito além das Igrejas.
Quando Francisco de Assis ouviu em sonho o chamado de Deus: “Levanta-te, Francisco, e repara a minha casa!”, ele entendeu que o propósito de Deus inicialmente era reparar uma pequena capela em ruínas em Assis; só mais tarde é que ele se deu conta de que foi chamado para ajudar na radical reconstrução de toda a Igreja romana em ruínas. Talvez até o Papa Francisco e toda a Igreja Católica estejam apenas gradualmente se dando conta de que a renovação sinodal é um processo que não diz respeito exclusivamente à Igreja Católica.
Trata-se de muito mais do que a transformação da mentalidade clerical e das instituições rígidas da Igreja Católica, devastada por escândalos e conflitos internos, em uma rede dinâmica de comunicação mútua. A sinodalidade (syn hodos – caminho comum) requer solidariedade, cooperação, compatibilidade e comunhão ecumênica no sentido mais amplo e profundo da palavra. É mais do que a unidade entre os cristãos ou o aprofundamento do diálogo inter-religioso.
O processo de globalização, a coalescência do mundo, está em grave crise no nosso tempo. Seus muitos lados obscuros foram revelados – o aumento da desigualdade econômica, a globalização do terrorismo, as doenças contagiosas e as ideologias infecciosas do etnonacionalismo, do populismo e das teorias da conspiração. Mas os grandes problemas da humanidade não podem ser resolvidos apenas em nível nacional. A interconexão global no nível da economia, dos transportes e da informação não criará por conta própria uma oikumene, uma casa comum. Nenhuma ideologia, nem mesmo a “ideologia cristã”, pode substituir a dimensão espiritual que falta no processo de globalização.
Um só corpo, um só Espírito, uma só esperança. Não é só com todos os cristãos, mas também com todos os seres humanos e todas as formas de vida na terra que formamos um só corpo. O Espírito de Deus, o Spiritus Creator, está constantemente criando, animando e transformando esse corpo, a sinfonia inacabada da criação. Ele vive e atua por meio da nossa esperança, fé e amor; está constantemente transcendendo e derrubando todos os muros de fronteira que erguemos entre nós e dentro de nós.
Para encerrar, gostaria de citar uma história judaica hassídica. O Rabi Pinchas fez a seus alunos uma pergunta aparentemente simples sobre quando termina a noite e começa o dia.
“É quando há luz suficiente para distinguir um cachorro de uma ovelha”, sugeriu um deles.
“É quando conseguimos distinguir uma amoreira de uma figueira”, argumentou outro.
“É naquele momento”, respondeu o Rabi Pinchas, “em que podemos reconhecer no rosto de qualquer ser humano o nosso irmão ou a nossa irmã. Enquanto não pudermos fazer isso, ainda é noite.”
Irmãos e irmãs, em partes do nosso mundo, em partes das nossas comunidades de fé e das nossas Igrejas, em partes dos nossos corações, ainda é noite; a escuridão do preconceito, do medo e do ódio reina.
O objetivo da “Nova Reforma” é transformar e unir o cristianismo na luta pela unidade da família humana.
É um objetivo escatológico, mas, no nosso tempo, temos um passo importante a dar nesse sentido. Ele consiste em reconhecer e admitir – com todas as suas implicações – que todas as pessoas são nossos irmãos e nossas irmãs, que têm direitos iguais ao reconhecimento de sua dignidade, à nossa aceitação no respeito, no amor e na solidariedade.
Pessoas, nações, culturas e Igrejas estão procurando sua identidade e uma nova esperança em um mundo quebrado.
A assembleia de vocês intitula-se: “Um só corpo, um só Espírito, uma só esperança”. Sim, essa é a nossa esperança que queremos partilhar com todos. A nossa esperança reside no fato de que o Espírito de Deus está continuamente unindo a humanidade num só corpo.
São Paulo escreveu sobre a fé que age no amor. Sejamos testemunhas de uma fé que continuamente desperta a esperança por meio do amor. Sejamos testemunhas da contínua ressurreição do Doador de esperança.
Desejo que a assembleia de vocês seja um sinal convincente da esperança de que a noite está passando e de que o dia se aproxima.
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Uma nova reforma para transcender todas as fronteiras. Artigo de Tomáš Halík - Instituto Humanitas Unisinos - IHU